20 de janeiro de 2023

Ó minha Paixão

Porque te contentas tu, Ó minha Paixão,
Com a sombra das árvores tombadas,
Com as marés que morrem na ondulação.
Porque não és tu como as outras amadas?

Porque caminhas tristonha, Ó minha Paixão,
Com a alma a tombar nas pedras da calçada,
Com o corpo morto a quem ninguém estende a mão.
Porque és tu a caravela naufragada?

Nesta terra de ventos passados, Ó minha Paixão,
És o uivar esquecido por entres os carvalhos a soprar,
És a melodia agresta da tua própria condenação.

Quem és tu, Ó minha Paixão, senão uma alma castigada
Que aos olhos do mundo as pedras faz chorar.
Quem és tu, Ó minha Paixão, senão o espinho d´uma rosa envenenada…

13 de janeiro de 2023

Cantai, meu Ílhavo!

Cantai alto, meu Ílhavo, cantai ao Nosso Senhor
Que a tua hora em breve irá chegar.
Cantai alto, meu Ílhavo, cantai-lhe a tua imensa dor
Que as ruas plenas de tristeza já se cobriram do teu chorar.

Cantai, meu Ílhavo, cantai alto as rezas entoadas
Que os teus filhos perdidos jamais irão retornar.
Cantai, meu Ílhavo, cantai alto as perdas das mães amarguradas
Que deitar-se-ão eternamente ao som do fúnebre badalar.

Cantai, meu Ílhavo, cantai ao Nosso Senhor
Que um dia o mar a tua abençoada terra irá levar.
Cantai, meu Ílhavo, cantai em voz de tenor.

Não te salvarão as dunas nem os teus longos areais.
Cantai alto, meu Ílhavo, cantai pelas almas perdidas no imenso mar
Que os seus corpos são agora os eternos barcos atracados no teu cais.

Ó, Triste Rei!

Encontrei junto às portas no céu erguidas

O corpo trémulo d´um Rei,

De vestes reluzentes, com uma coroa de esmeraldas esculpidas.

Vi-lhe no rosto o semblante d´um sonho que outrora vislumbrei.


Ajoelhei-me perante os seus pés nas nuvens pousados,

Beijei-lhe o couro dos sapatos que eu próprio engraxei

Com o fado negro dos meus pecados.

És tu, Ó Sonho, o triste algoz da vida que outrora desejei.


Ó, triste Rei! Entrego-te em mãos a essência do meu viver,

A quimera fantasiosa dos promessas infundadas,

Toda a força inerte do meu tão sonhado querer.


Ó, triste Rei! Foste a visão de quem acordou para te ver nascer,

O cantar do silêncio nas longas madrugadas,

Foste a corda, o fado louco dos que te quiseram mas não puderam ter.

Perfume Salgado

Ao som do frenético fumegar regressam os homens embarcados,
Os bravos heróis da safraas faces de tristes semblantes.
Desembarcam com saudade latejar, com os sonhos outrora distantes,
Com as mãos queimadas pela maresia dos mares gelados.

seu tão desejado retornar
Dissipa-se ao passar do vento, ao avistar das famílias amadas.
São eles as almas desembarcadas
Que regressam casa com corpo num eterno baloiçar.

sonho é finalmente vivido
Embalado ao som do chorar sentido.
abraço é grande apertado.

Volta Homem que seu regresso havia prometido,
Com cheiro que jamais se tornará desconhecido
Pois seu perfume é agora salgado.

Os Desagrados

À noite, sentados à mesa de madeira,
Trocámos histórias,
Limpámos da testa a sueira
E narraram-se as nossas dolorosas memórias.

As velas no seu sinfónico arder
Foram a luz do entardecer.
Os rostos absortos e desanimados
Tombaram de tristeza ao narrar dos desagrados.

Foi o Zé da Maria 
Que partiu sem beijar a família.
O Toino da Torreira
Que roubou uma algibeira.

Foi o Zé da Gafanha
Que outrora ficou sozinho à deriva no mar.
Incendiara-se o seu navio numa manhã
E mais ninguém se conseguiu salvar.

Terra de Mar

Partirei desta minha terra,
Terra que tão bem me amou.
Deixarei para trás a guerra
Que o nosso Estado nos delegou.

Viajarei rumo a uma tormenta,
Deixarei de beijar densa aragem,
Deixarei de avistar os bairros da coleta,
Irei seguir noutra romagem.

Miro esta Terra de Mar,
Aldeia que terei de deixar
E parto a rezar à Nª Sra. dos Remédios.

Beijei eu o chão dsua capela,
Supliquei-lhe que guardasse a minha amada donzela
E que livrasse os marinheiros de tão indesejados cemitérios.


Terei de embarcar
Sabendo que não é certo o meu retornar.
Estarei nas mãos de Deus
E serei a prece na reza dos Meus.

Toda a minha vida
Aqui a vive, aqui foi crescida.
Nasci gaiato do mar,
Fora nas suas ondas que aprendi a trabalhar.

Já sou um velho embarcado,
Conheço o meu Ílhavo e a sua cor.
Sei eu cada maré no seu leito galgada.

Aceno-lhe mesmo que embriagado
Por esta bebida que é a minha dor,
Dor de ter de partir numa longa temporada.